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Messianismo e Práticas Heréticas
Messianismo e Práticas Heréticas


Messianismo e Práticas e Heréticas

Este artigo foi inspirado num pequeno incidente. Fui procurado

por uma pessoa que viajara aos Estados Unidos e me trazia um

folheto de uma sinagoga que visitara. A pessoa em questão

achara o folheto interessante e um bom modelo para a

divulgação de uma sinagoga. Quando tive oportunidade de ler

com mais atenção o tal folheto, vi que não se tratava de um informativo de uma

sinagoga, mas de um templo do grupo que se auto-denomina Judaísmo

Messiânico. Tal grupo, que já conta com instituições no Rio e em São Paulo, se

apresentam como judeus que vêem em Jesus o Messias e no Novo Testamento

uma fonte canonizada.

Motivado pelo crescimento de tal grupo e pela dificuldade da pessoa que me

entregara o folheto de identificar que tipo de

"sinagoga" havia visitado, escrevo

o que se segue…

O intolerável é sempre uma medida muito interessante. Representa a

transgressão de uma fronteira que na verdade só se define claramente ao ser

cruzada. Infeliz do tolerante que não conhece esta dimensão e que, portanto,

não pode se perceber na condição de alienado.

A modernidade nos trouxe uma insuportável capacidade de confundir a

tolerância com a alienação. Mudar-se de tom no meio de uma melodia é algo

desagradável aos ouvidos sem com isto dizer-se que um tom é melhor do que

outro. O que é intolerável não é a diferença, mas a indiferença - a capacidade de

se esquecer do compromisso com a melodia. A tolerância não é uma medida

absoluta e exigir-lhe esta natureza é estar-se de fora, externo e indiferente. O

que é intolerável é sempre da ordem de uma tolerância inaceitável muito mais

do que da discórdia e da diferença. O outro que é diferente pode chegar a ser até

mesmo apreciado, um mesmo que é diferente estará sempre na dimensão do

tolerável.

Os movimentos religiosos que existem hoje dentro do judaísmo são exemplos de

um mesmo que é diferente. Suas patologias podem se expressar pela alienação

dos mais tolerantes frente aquilo que não deveria ser tolerado ou pela

intolerância dos menos tolerantes em relação à aquilo que deveria ser tolerado.

Liberais portanto podem ter sido condescendentes e pluralistas com o

intolerável e Ortodoxos implacáveis com o tolerável. Alcançar este

discernimento só é impossível através de alguma definição de fronteira. Sem

fronteiras que definam o que é um mesmo ou o que é um outro não existe

qualquer possibilidade tanto de tolerância quanto de apreciação.

Quando duas ou mais tradições se encontram em espaços ecumênicos seu

tratamento mútuo não consegue ultrapassar a dimensão da tolerância. São

tradições tratadas com uma mesma deferência, são parte de um mesmo, e como

diferentes partes de um mesmo só podem se tolerar. Se, por outro lado, este

encontro se dá na dimensão do outro, na linguagem ou no espaço do outro onde

não se pode ter qualquer dúvida de que o outro é o outro, então há espaço para a

apreciação.

Ou como a cultura idische diz melhor, mais rápido e mais barato do que

qualquer filosofia: "se eu sou eu porque você é você e você é você porque eu sou

eu - nem eu sou eu e nem você é você; mas se eu sou eu porque eu sou eu e você

é você porque você é você, então eu sou eu e você é você e nós podemos

conversar." Se eu sou eu porque você é você e vice-versa então o que mais

podemos almejar é a tolerância. Se eu sou eu porque eu sou eu e vice-versa,

então é possível apreciar-nos e enriquecer-nos com nossa conversa. No

ecumenismo é facilmente discernível os espaços onde se pratica a diplomacia e

onde se pratica o enriquecimento no diálogo.

Surge hoje nas grandes capitais onde há presença judaica o cada vez mais visível

Judaísmo Messiânico. Este grupo se assume como parte da fé judaica que

reconhece Jesus enquanto Messias e pratica o judaísmo em sua forma cultural e

tradicional. Tem corpo de judeu - propõe-se as mitsvot, circuncisão, kashrut,

shabat, tefilá, chama seu mentor espiritual de rabino e sua casa de orações de

sinagoga - e alma cristã - fala de Ioshuah, o salvador que trouxe nova luz e faz

uso de livros que não fazem parte do cânone judaico. Há sem dúvida um canto

de sereia no ar e um desafio em particular para aqueles que toleram.

Não tolerar este tipo de grupos não seria legitimar o não reconhecimento dos

grupos mais tradicionalistas e radicais que não toleram qualquer outra prática

que a sua ortodoxia? Não tolerar não significa experimentar o mesmo tipo de

reação legítima, portanto, destas ortodoxias?

Acredito que não. Este grupo não é um mesmo diferente, é um outro. Poderia ao

assumir isto ser até mesmo da dimensão da apreciação - poderia haver muita

conversa. Sua perversidade é dizer-se parte de um mesmo para um grupo

minoritário como são os judeus, com um longo passado de submissão à

catequeses e até mesmo ao proselitismo violento, e em profunda transformação

de sua identidade. É hora dos tolerantes serem profundamente coerentes com

sua essência e exercerem sua intolerância. É um momento profundo de

expressar-se não como um alienado ou um indiferente. É momento de resistir às

tentações da indiferença que se dissimulam na tolerância e que não reconhecem

que o judaísmo é uma melodia. Não acredito ter que ser a única melodia - sem

possibilidades de conversas - mas é uma melodia própria.

O judaísmo suporta qualquer jazz mas não o desafinar.

Triste a história deste grupo que ao invés de fazer jazz a partir da tradição cristã,

vem desafinar o judaísmo. É suspeita esta necessidade de fazer-se um mesmo

sendo-se um outro. Esta falta de transparência parece atender a um mercado

das confusões mais do que abrir novas perspectivas melódicas a este mundo tão

necessitado delas.

Ao mesmo tempo é este um momento importante para os judeus de conhecer

suas próprias fronteiras. Bom este momento para lidar com nossas patologias.

Que o liberal tolerante conheça suas intolerâncias e que o tradicionalista

intolerante conheça suas verdadeiras tolerâncias.

Que os ditos Judeus Messiânicos despertem para o ato de agressividade que

cometem ao se fazerem partes de um mesmo e que busquem o diálogo do

diferente com aqueles que dizem respeitar - os judeus. Que a tradição cristã não

se rejubile nesta manifestação religiosa como a cristianização dos judeus, mas

que a compreenda como uma variante cristã em busca de suas origens. Cabe ao

Cristianismo um ato de tolerância para com os seus, com mais um movimento

dentro de suas fronteiras. Se a Igreja do passado não tivesse se compreendido

como um mesmo, mas como um outro do judaísmo, se não tivesse se olhado

pela ótica da cristianização dos judeus ou da transformação do velho em novo

seja em testamento ou em mensagem, teríamos sido mais outros e teríamos

conversado muito mais.

A heresia não é da dimensão do outro, mas do mesmo. Reforçar as identidades,

fazer-se mais outro, é o caminho da paz e da apreciação. Que cristãos sejam

mais cristãos, que judeus sejam mais judeus, em particular assumindo a sua

legítima diversidade. "E naquele dia D'us será Um e Seu Nome Um" é o dia das

muitas melodias que se apreciam. Não será o dia do enfadonho canto uníssono,

nem do canto atravessado dos mesmos que são outros. Será o dia em que a

diferença for sagrada e a indiferença uma heresia.

*Nilton Bonder, nasceu em Porto Alegre, em 27/12/57. Ordenou-se Rabino, pelo

Jewish Theological Seminary, N.Y, em 1987. Escreveu 14 livros vários deles

best-sellers no mercado editorial brasileiro e estrangeiro. (

www.cjb.org.br)

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